sábado, 1 de setembro de 2012

Dívidas preocupam 62% das famílias que moram nas capitais brasileiras

Para tentar entender o gigantesco universo de compras, dívidas e juros, a Federação do Comércio de São Paulo estudou o comportamento das famílias brasileiras nos últimos dois anos.

ISABELA ASSUMPÇÃO E ROSANE MARCHETTISão Paulo e Porto Alegre


Era uma vez um povo que sonhava em morar numa casa espaçosa, confortável. Na cozinha, fogão e geladeira novos. Na sala, a televisão enorme e o computador de última geração. Na porta da casa, mostrando o quanto a vida melhorou, o carro novo à espera da próxima aventura da família.
 
Milhões de brasileiros dão duro todos os dias para transformar esse sonho em realidade. Desejamos, planejamos. Estamos sempre fazendo contas. E mesmo quando não temos todo o dinheiro pra levar pra casa o nosso objeto do desejo, nada nos impede. Afinal, quem sonha, tem crédito.
 
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E são bilhões de reais em crédito. Para tentar entender esse gigantesco universo de compras, dívidas e juros, a Federação do Comércio de São Paulo estudou o comportamento das famílias brasileiras nos últimos dois anos.
Com informações de consumidores das 26 capitais e do Distrito Federal, foi se desenhando um mapa do endividamento no país. A conclusão? Dívidas? Atire a primeira pedra quem não tem nenhuma?
Ao todo, 62% das famílias que vivem nas capitais brasileiras têm algum tipo de dívida. O músico e publicitário Rafael. O analista de compras Rafael. Dois jovens que antes dos 30 vivem seus últimos momentos de solteiro. E como diz o velho ditado: quem casa, quer casa.
“Eu não quero casar endividado, eu só caso com você se não tiver dívida. Se tiver eu não vou casar”, ressaltou o analista de compras Rafael Bezerra.
“Eu concordei na hora. Nossa, mudou, viramos adultos”, lembrou a assistente financeira Bruna Vila Toledo.
Deixar o mundo do faz de conta, onde tudo dá certo, não foi fácil. Logo no início da vida profissional, Rafael e Bruna foram enfeitiçados pela magia do consumo. Gastaram bem mais do que podiam. E ainda enfrentaram o pesadelo do desemprego. Tudo, tudo parecia conspirar contra o final feliz.
“Tínhamos o carro. Roubaram o carro. Não tínhamos o seguro, por conta de não ter pago o seguro. Aí ficamos com a dívida do carro. Então acumulou o cheque especial, a dívida do carro, o boleto”, contou Bruna.
“Chegou alguma hora que vocês olharam aquilo e viram que tavam realmente em apuros ou não?”, perguntou a repórter.
“Não, nem olhava, a gente já sabia que tava em apuros. Nem vou olhar . Meu Deus”, disse Rafael.
Mas o que os olhos não veem, o coração sente. E muito. Os problemas financeiros abalaram o romance.
“Se você não tiver cabeça, essas coisas entram no relacionamento e acabam. Não tem jeito”, revelou Rafael.
“Ele ficou muito nervoso, ficou muito revoltado na época. Não tinha paciência com nada, nem comigo, muito menos comigo. Resolveu falar, eu vou curtir a minha vida e fica cada um pro seu lado. Falei, então está bom”, disse Bruna.
“Aí depois de três meses a gente voltou o namoro”, lembrou Rafael.

“Esses três meses que ficamos separados serviu muito. Cada um sentou e pensou realmente, existe um futuro, nós vamos ficar velhos, foi uma lição mesmo pra nós”, destacou Bruna.
Com paciência e amor, eles recomeçaram. Emprego novo. Vida nova.
“Eu olhei pra dívida, eu tive coragem de olhar pra ela, falei assim, agora vamos conversar”, completou Rafael.
“O brasileiro é um bom pagador. Todos os indicadores de inadimplência que nós temos disponíveis mostram isso. De R$ 600 bilhões que estão emprestados no mercado, apenas 8% estão sem pagamento, estão inadimplentes”, afirmou o assessor econômico da Fecomercio/SP, Altamiro Carvalho.
“Renegociamos tudo. Eu entrei em contato com os bancos”, contou Rafael.
“Aí acabou cinema, restaurante, pizzaria”, disse Bruna.
“Ou seja era possível. Era uma questão de organização, dedicação, foco naquilo que você tá fazendo”, completou Rafael.
Foco? Organização? Isso nunca foi problema para outro Rafael, o publicitário que usa a música para passar a sua mensagem.
“Eu comecei a trabalhar com uns 16 anos, mais ou menos. Então desde essa época eu já falei: ‘bom, algum dia eu vou querer comprar a minha própria casa, o meu próprio apartamento. Então já vou guardando dinheiro porque eu sei que algum dia eu vou precisar usar’”, disse o publicitário e músico Rafael Ortega.
O dinheiro que estava na poupança, agora está todo em um apartamento. Com uma ajudinha da família, Rafael e Regiane vão começar a vida a dois com apartamento próprio, e reformado do jeito que eles sonharam.
“A gente priorizou o apartamento em relação ao casamento, a festa”, contou Rafael.
“A gente preferiu investir no apartamento porque é uma coisa que vai pra vida toda”, completou a quiropraxista Regiane Wiens.
Nesse caso a vida real conspirou a favor. O pai e os tios de Rafael receberam o imóvel de herança e concordaram em vender para o casal. Um negócio de família, sem juros. A parte dos tios, os noivos já conseguiram pagar. A do pai. Bom, a do pai, “eu propus pra ele, eu falei: ‘pai, que você acha de eu pagar em quatro anos, R$ 1,5 mil por mês?’. Se eu fosse pagar um aluguel ia ser por aí. Então, ele falou: ‘claro, quatro anos, não tem problema. Eu quero te ajudar’”, explicou Rafael.
Quem não sonha com uma facilidade dessa? Em todo o país, são três milhões de imóveis financiados. Juros em cima de juros. É como correr, correr e quase não sair do lugar.
Tânia pagou R$ 768 este mês de prestação do apartamento, R$ 383 só de juros.
“Você sofre um pouco quando vê todos esses papéis de todas as prestações que já foram e as que faltam ainda?”, perguntou a repórter.
“Na verdade eu falo assim: ‘oba, isso aqui já passou, eu já paguei’”, disse a funcionária pública Tânia Maria Ferreira.
O apartamento de 44 metros quadrados foi financiado em 20 anos. Dívida longa, com vista privilegiada.
“Eu me animei porque eu tive conversando com o gerente, ele falou: ‘olha, 80% das pessoas que financiam, elas quitam o imóvel no máximo em 10 anos’. Eu pensei: ‘eu vou estar nessa faixa’”, lembrou Tânia.
Dos R$ 69 mil que financiou, Tânia já pagou mais de R$ 40 mil. E ainda deve R$ 56 mil. Conta que assusta qualquer um.
“Eu fiz os cálculos do nosso. A gente conversou sobre isso. O nosso daria dois apartamentos e meio”
“E começar a vida com uma dívida já pesada não te pareceu uma boa?”, perguntou a repórter.
“Não, não. Já começar com problema no relacionamento, não vale a pena”, respondeu Regiane.
O Rafael e a Bruna sabem bem disso. No computador, a saída que eles encontraram para uma vida mais tranquila. Rafael trata como uma filha a planilha que ajudou o casal a escapar da crise financeira e amorosa.
“O cartão de crédito meu e da Bruna, aí tem a mensalidade da escola, curso, academia, tem faculdade, tem dentista”, explicou Rafael.
Tudo muito bem controlado por quem não quer repetir o erro.
“Agora nesse caso de janeiro que vocês ficaram no negativo, isso quer dizer o quê? Que vocês entraram de novo no cheque especial?”, perguntou a repórter.
“Não, a gente já tinha um dinheiro guardado. Na verdade ele também serve de um seguro pra você. Como a gente está em estado de casamento, sempre vai ter aquela coisinha que a gente vai ter que gastar. Não é estado de graça, é estado de casamento”, afirmou Rafael.
E como quem casa, sempre quer casa. Rafael e Bruna já tem um apartamento pra chamar de seu. Vai ser entregue só em setembro, depois do casamento. Mas, tudo bem. Se o final for feliz, ninguém se importa de esperar mais um pouquinho.
Em um mundo de tentações. Difícil resistir. A cada passo, a cada olhar, a gente sente que vai mesmo realizar um sonho. Afinal o crédito é fácil e as prestações baixinhas. Parecem caber direitinho no nosso bolso.
Dona Cleide faz parte de um exército de brasileiros que carregam cada vez mais sacolas de compras.
“Estou comprando mais do que eu comprava alguns anos atrás”, afirmou a aposentada Cleide Fernandes Neimaer.
“Por que aumentou a sua renda ou facilitou o crédito?”, perguntou a repórter.
“Facilitou o crédito filha, facilitou o cartão. Cartão facilita muito, tu sabendo trabalhar com ele. Tu não ter três cartões tudo em cada loja, não. Eu faço assim: eu termino de pagar esse, pego outro pago. E se aquele que está bom eu entro no meio”, respondeu Cleide.
Comprar é muito bom. Ruim, é não poder pagar. Ninguém quer estragar o sonho de ninguém, mas se nessa hora de euforia a conta não for feita direitinho, perigo à vista. Ou melhor, à prazo. Em infinitas prestações.
“O endividamento por si só ele não é uma coisa ruim. Quando a família se endivida, ela simplesmente está comprando a credito. O problema é quando as famílias não tem a capacidade de honrar as dividas que elas assumiram”, explicou a economista Patrícia Palermo.
E as famílias de Porto Alegre têm a maior dívida média do Brasil. São R$ 2.180 por mês. Fomos atrás desses compradores. Cheios de contas pra pagar. Encontramos Anajara, com três financiamentos, muitas parcelas e apenas um salário mínimo. Ela entrou no SPC.
"Meu sonho mesmo é pagar essas dívidas e ficar com o nome limpo para conseguir o meu cartãozinho normal", disse a empregada doméstica Anajara Martins Soares.
Mas o que fazer para não ficar com o nome sujo na praça? Ouvimos economistas e consumidores. A regra número um e elementar: não gastar mais do que se ganha.
“O que as pessoas têm que ter claro na sua cabeça é que acabou-se o tempo de se fazer contas baseadas na lembrança. As famílias vão ter que sim, sentar ao redor de uma mesa, botar nas contas num papel e deixar claro a todos os envolvidos quanto se ganha, quanto se gasta e quanto se pode gastar”, afirmou Patrícia Palermo.
Seja um comprador. E também um poupador.
“Ele pode adquirir coisas, ele pode ser feliz comprando coisas. Gastando, mas fazendo poupança”, ressaltou o economista PUC-RS Alfredo Meneghetti.
E pesquise muito, para ter certeza de que não vai errar.
“Primeiro eu estudo quanto dá de juro no final. Se vale a pena eu compro no carnê, se não vale a pena eu vou pro cartão, se não vale a pena o cartão, eu compro à vista”, afirmou a recreacionista Sílvia Marques.
E ao comprar à vista. Peça desconto, ele parece pequeno, mas vale a pena.
“Pelo histórico inflacionário as pessoas pensam que um bom desconto à vista fosse 20%, 10%, mas o que o lojista consegue repassar efetivamente como desconto à vista pro seu cliente acaba ficando em torno de 5%, que é o custo que ele tem se ele for antecipar esse recebível com uma operadora de cartão de crédito, com o banco”, explicou o presidente da CDL-Porto Alegre, Gustavo Schifino.
E vale a pena comprar à prazo?
 
“O vilão nessa história não é o parcelamento, o parcelamento ele ajuda. Tu vai antecipar o prazer de uma compra. E sempre com cuidado de não pagar um juros muito alto nisso”, completou Gustavo Schifino.
E não assuma dívidas antes de analisar o orçamento da casa. Lembre que você tem água, luz, telefone e o supermercado para pagar.
Além da razão, o coração tranquilo também ajuda muito. Nunca devemos ir às compras sob efeito de sentimentos fortes como inveja, tristeza,raiva ou competitividade. Porque acabamos compensando essas frustrações nas compras. E mais um segredinho: não confunda necessidade com desejo de comprar.
 
FONTE: GLOBO REPORTER

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