É do código genético deste polonês desembarcado no Brasil
aos 30 anos de idade que saiu o DNA capaz de assegurar aos Klein não só um
patrimônio bilionário mas a condição de inigualáveis na arte de fazer negócios
no varejo
Houvesse uma variação de método na escolha de cada
colocado neste ranking, aqui se veria um dos casos cuja posição poderia inspirar
não um nome, mas uma família. Ou uma empresa. A retumbante história de sucesso
da gigante do varejo Casas Bahia, a especial qualidade da sucessão familiar e
profissional nos negócios do clã dos Klein e a soma de virtudes que compõem o
universo do criador, da criatura e de seus herdeiros justificariam a heresia
proposta. Mas, por mais sedutora que seja a ideia de o todo representar a parte,
por mais poderoso e reconhecido que seja o primogênito Michael Klein, e por
maior que seja a mudança na composição acionária da empresa fundada pelo
patriarca e hoje controlada pelo Grupo Pão de Açúcar, Samuel Klein ainda é o
cara.
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Entenda
o ranking Os 60 mais poderosos do País Confira o
ranking Os 60 mais poderosos do País É do código genético
deste polonês desembarcado no Brasil aos 30 anos de idade que saiu o DNA capaz
de assegurar aos Klein não só um patrimônio bilionário mas a condição de
inigualáveis na arte de fazer negócios no varejo. Com esta arte Samuel construiu
os alicerces de uma história que se tornou um dos mais bem acabados exemplos da
mobilidade social de que o Brasil foi capaz de produzir. Ele, afinal, saiu do
mascate à montagem de um império, um gigantesco salto rumo à eternidade das
finanças, com a construção de um império cujo faturamento ultrapassa os R$ 12
bilhões anuais. Melhor: um dos homens mais ricos do País é também um bilionário
de gestos e hábitos simples, por mais fantasioso que isso pareça.
Sobrevivente do holocausto Mas nem só de superlativos e
adjetivos forja-se um mito do empreendedorismo. A trajetória de Samuel Klein
exibe uma pletora de substantivos. São gestos, feitos, fatos, voltas e
reviravoltas com características de uma ficção. Terceiro de nove irmãos, filho
de carpinteiro de família judaica, ele nasceu em Lublin, na Polônia. Aos 19
anos, foi preso pelos nazistas e mandado com o pai para o campo de concentração
de Maidane. Sua mãe e cinco irmãos mais novos foram parar em um campo de
extermínio, Treblinka, e Samuel nunca mais os viu. Eis a diferença que, no
Holocausto, demarcava os tênues caminhos entre a vida e a morte: Samuel era
jovem e forte, e isso fez com que os nazistas o mandassem para um campo de
trabalhos forçados.
Com o ofício que aprendera com o pai, conseguiu
ultrapassar a primeira fase do inferno: sobreviver. A segunda fase, em 1944,
elevou-o ao purgatório. Aproveitando-se de uma distração dos guardas, Samuel
sumiu no mato. Fugiu e se escondeu ainda na Polônia até acabar a guerra, no ano
seguinte. Com o fim do conflito, viajou a Munique, na Alemanha, com a irmã Sezia
e o irmão Salomon, em busca do pai. Conseguiram reencontrá-lo vivo. Viveram em
Munique de 1946 a 1951. Samuel ganhou a vida vendendo produtos para as tropas
aliadas. Juntou algum dinheiro e casou-se com uma jovem alemã, Ana (ou, no
alemão, Chana). Em 1951, decidiu dar uma nova guinada. Resolveu aventurar-se na
América do Sul. Errou na primeira escolha – a Bolívia, para onde decidira ir,
encontrava-se em plena guerra civil. Acertou no ano seguinte, quando aportou no
Brasil, onde alcançaria o que se pode definir como algo próximo ao paraíso.
Mascate com crediário Samuel, a mulher e o primeiro filho
do casal – Michael, então com um ano de idade – instaram-se na pequena São
Caetano do Sul, na região do ABC paulista. Comprou uma casa e uma charrete com
as economias que tinha. E, com a ajuda de um conhecido que transitava bem pelo
comércio do Bom Retiro – reduto dos imigrantes judeus e árabes –, comprou uma
carteira de 200 clientes e mercadorias. De porta em porta, começou a mascatear
pelas ruas de São Caetano do Sul, vendendo roupas de cama, mesa e banho.
Criativo e incansável, não raro se deparava com alguém que dizia não ter
condições de pagar pelo produto. A saída era engenhosa para aqueles tempos quase
feudais na região: ficar com o produto e pagar em prestações. No crediário.
Concebia-se ali a fórmula que sublinharia a notável ascensão de Samuel e seus
negócios.
“O segredo é comprar bem comprado e vender bem
vendido”
Apenas cinco anos depois de iniciar o mascate, Samuel
compraria, em 1957, sua primeira loja, no centro da cidade. Batizou-a de “Casa
Bahia”. O nome vinha da homenagem aos imigrantes nordestinos que haviam se
deslocado para a região em busca de trabalho na indústria automobilística e
formavam a principal carteira de clientes. Nas palavras que passou a repetir nas
décadas seguintes, a missão que tomou para si naquela época foi realizar sonhos
de quem acha que nem deve sonhar. Mesmo que, sob esse altruísmo edificante,
encontre-se a meta implacável de todo negociante, parece difícil achar alguém
que desabone tal propósito. Um de seus méritos foi perceber que existia uma
fatia importante de brasileiros que desejava consumir, mas não conseguia porque
não poupava. Samuel flexibilizou a concessão de crédito e ofereceu o pagamento
em parcelas que cabia no bolso de um público ignorado pelo varejo.
A
máxima nasceu ali, nos anos 50, e vigeu por mais de meio século – até hoje. Como
se sabe, muitas empresas de varejo se especializaram em viabilizar
financeiramente os desejos de consumo das classes C, D e E, as mais populosas do
Brasil. Mas nenhuma atuou com tamanho nível de ousadia como a rede de Samuel
Klein. Enquanto os antigos concorrentes fracassaram, ele fez sucesso. Antigas
cadeias, como Mesbla, Mappin e Coroa Brastel, investiam em lojas sofisticadas,
Klein montava pontos de venda despojados de luxo. Aquelas ofereciam enorme
variedade de produtos, com ênfase nos top de linha. Nas Casas Bahia, sempre
imperaram as mercadorias simples, familiares a seu tipo de público. Os
celulares, por exemplo, só entraram nas gôndolas das suas lojas em 1999, quando
os preços se tornaram mais acessíveis. A simplicidade das instalações de suas
lojas e a porta escancarada para a periferia deram o tom das Casas Bahia,
enquanto os concorrentes perseguiam os clientes endinheirados. E o risco de
inadimplência? Uma bobagem, como ensina a filosofia de Samuel Klein: “A riqueza
do pobre é o nome”, informa uma de suas máximas.
Simplicidade até
certo ponto Foi assim que, da abertura da primeira loja para cá,
diversas meias verdades se estabeleceram ao redor do mito com o mesmo vigor de
suas máximas e de seus pré-requisitos para o sucesso. Uma delas era de que o
segredo do negócio da rede Casas Bahia sempre foi a intuição e o carisma de seu
fundador. Mais ou menos. Antes de tudo, os atributos de Samuel Klein constituíam
a matéria-prima para um modelo de gestão razoavelmente sofisticado, sustentado
por três pilares: enorme poder de compra, gestão financeira impecável e
publicidade massiva e permanente.
Frases curtas e certeiras, emitidas
de maneira simples pelo dono, garantiam a condição singular do que hoje costuma
ser acompanhado por rapapés estilísticos repetidos à exaustão pelos
especialistas em varejo ou de qualquer outro setor do mundo corporativo. Nada de
“otimizar o relacionamento junto à cadeia de fornecedores” ou “desenvolver uma
proposta de valor que encante o cliente” – lugares comuns que hoje enxaguam as
cartilhas. Samuel Klein sempre deu lições mais autênticas, verdadeiras e
eficazes: “O segredo é comprar bem comprado e vender bem vendido”, repetia,
demonstrando uma variação de uma de suas leis mais famosas: “Compro por 100 e
vendo por 200”.
“Comprar bem comprado”, para bom entendedor, significa
um eufemismo para arrocho na negociação com fornecedores. Primeiro Samuel,
depois seus filhos Michael e Saul, ou o neto Raphael, sabiam que grande parte da
vantagem competitiva de uma grande rede do varejo era ancorar-se nos enormes
volumes comprados e nos descontos decorrentes conseguidos com os fornecedores.
Foi assim tanto nos Estados Unidos, com o exemplo do Wal-Mart de Sam Walton,
quanto no Brasil das Casas Bahia e do Pão de Açúcar.
A estratégia
exibia requintes duríssimos. Muitas negociações ocorriam invariavelmente no fim
do mês, quando a indústria precisa cumprir metas de vendas e se desfazer dos
estoques. Pressionados, os fornecedores ofereciam grandes descontos. Outras
vezes, as Casas Bahia ajudaram uma indústria a vender o incômodo estoque que
abarrotava seus almoxarifados. “Damos com uma mão, tiramos com outra”, explicou
Michael certa vez. Houve ocasiões em que os Klein anteciparam dinheiro para que
o fornecedor pudesse colocar a fábrica em funcionamento – ocorreu com a
Gradiente em momento de grave crise.
Sucessão e profissionalismo,
fusão e arrependimento Samuel Klein soube preparar com antecedência
e sabedoria a sucessão na empresa. Herdeiro de um mito, Michael soube fazer o
império crescer. Juntamente com o irmão, Saul, de um toque de modernidade ao
jeitão popular da rede: passou a investir em publicidade e na expansão da
empresa. Seguia uma das máximas do pai, a de que o importante é trazer o cliente
para a loja e fazê-lo comprar. Daí porque ninguém investiu tanto em publicidade
quanto as Casas Bahia investiram nos últimos 10 anos – deixando Unilever,
Nestlé, Coca-Cola e General Motors para trás.
“Quem tem sócio tem patrão”
Quando a empresa
atingiu um faturamento de R$ 14 bilhões, o jogo mudou de patamar. A partir daí
era necessário obter mais investimentos para ficar no nível dos grandes. Até
então vista por muitos como uma caixa-preta, a empresa parecia ser gerida com a
informalidade de uma padaria. A trilha escolhida foi vender 53% das Casas Bahia
para Abilio Diniz, então no comando do Grupo Pão de Açúcar. Com o poder nas mãos
de Michael desde 2009, coube a ele liderar, no ano seguinte, a fusão das Casas
Bahia com o Ponto Frio. Havia dois desafios para o filho mais velho de Samuel:
transformar a cultura do Ponto Frio e mudar a cultura da Casas Bahia, a fim de
adequá-la às características de uma empresa de capital aberto.
A
família Klein não tardaria a se arrepender do negócio. E não foi tanto porque o
império construído por eles tinha virado num estalar de dedos, uma empresa de
capital aberto – de pouca transparência financeira teria de se adaptar a um novo
cenário de cobranças, prestando contas não apenas às famílias controladoras mas
também a um conselho administrativo e a milhares de acionistas. Antes cortejado
por Abilio Diniz, Michael Klein logo se viu jogado para escanteio – ou pelo
assim o cabeça do Grupo Pão de Açúcar demonstrava. Abilio estava amparado no
contrato assinado à pressas no fim de 2009, nada favorável à família Klein.
Em poucos meses de sociedade, Michael enxergou em si um colorido
especial a um velho ditado – mais um deles – do pai: “Quem tem sócio tem
patrão”. Ele se enfezou. Foi atrás de advogados e reviu uma série de termos do
contrato que assinara. Saiu por cima, com direito a presidir o conselho de
administração por seis anos e, nesse período, indicar o CEO da empresa – seu
filho Raphael, que durante muito tempo fora o diretor de marketing da Casas
Bahia, o nome por trás das eloquentes cifras publicitárias.
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Samuel
Klein distribui ações da Viavarejo a filhos e netos Viavarejo,
controladora da Casas Bahia, confirma venda de ações da família Klein
Nova
gestão deve acelerar crescimento da Viavarejo Símbolo da
família Sim, mesmo com tantos nomes, Samuel Klein ainda é o cara.
Mesmo às vésperas de completar 90 anos de idade, comemorados no dia 15 de
novembro. Mesmo que há mais de uma década tenha saído da comissão de frente da
gestão do império que criou. Mesmo depois de anunciar a distribuição de suas
ações da Viavarejo, holding que administra Nova Pontocom, Ponto Frio e Casas
Bahia. O fundador da Casas Bahia distribuiu todas as suas ações para filhos e
netos.
Apesar da reestruturação, as fatias distribuídas em empresas que
concentram os negócios da família continuam a somar 47% do capital da Viavarejo.
O Grupo Pão de Açúcar, hoje nas mãos dos franceses do grupo Casino, detém 52% do
capital social da empresa. O resto está em circulação no mercado. Mesmo com a
saída de Abilio Diniz do comando do Grupo Pão de Açúcar, a família Klein mantém
intenção de vender parte de suas ações. O gesto destoa dos gestos exibidos pela
família até então – os Klein chegaram a conversar com os franceses do Casino
para comprar parte que hoje está sob controle do Grupo Pão de Açúcar e, assim,
voltar a ter poder de decisão e influência na empresa.